domingo, 18 de janeiro de 2009

O Penhor dos Anéis: a Sociedade do Cartão de Crédito

Quando a situação está preta financeiramente salve-se quem puder. O roteiro que acontece comigo é geralmente o mesmo: o dinheiro que entra em minha conta-corrente dá um beijinho nas tarifas e taxas de juros dos bancos, bate um papo com os débitos automáticos e CPMFs e logo sai, não chegando nem a pernoitar... Isto me deixa desesperado. Aperto o máximo o cinto, para não ter dívidas... pois se relaxo, aí já era... minha responsabilidade se desidrata e fico muito, muito descontrolado...

E foi justamente assim, numa época crítica, real e não muito distante, que recebi uma carta de meu banco, felicitando-me por estar recebendo um cartão de crédito, livre da 1ª anuidade. Quanta bondade. Acho que eles queriam que eu me sentisse honrado com aquele pedaço de plástico. Sei lá. Ao contrário, fiquei irritado por estar recebendo algo que não havia pedido. Nunca iria usar um cartão de crédito.

Pois bem... como o cartão só funcionava depois de desbloqueado por meio de uma linha 0800, não dei muita importância ao dito cujo e coloquei-o para dormir ao lado de uma nota de Cz$ 50.00 que tinha guardado como lembrança do tempo do Plano Cruzado.

Mas a vida... eita vida... sempre prepara aquelas surpresinhas, que lhe fazem lembrar de nunca dizer a palavra nunca.

No final do mesmo mês, acabou faltando, invariavelmente, dinheiro para completar o pagamento do aluguel de meu apartamento. Eu, que sempre emprestava de um amigo ou de minhas irmãs para remediar a situação até a chegada do salário, acabei tendo um revés, e, faltando dois dias para o vencimento da conta, não tinha boa alma que me emprestasse dinheiro.

Comecei a tremer só de pensar em pagar uma multa de 30% pelo atraso. E o efeito multiplicador deste gasto extraordinário seria devastador, seco e escuro (ia, com certeza atingir até a conta de luz e água).

Isto deixou-me mal. Passei o dia tenso. À noite, quando cheguei em casa, minha preocupação logo preencheu os 50 m2 do apartamento. Por onde eu olhava, via pontos de interrogação. Estava amargurado. De repente, da penumbra da cozinha ouvi uma voz:

- Olá, como estás? Tudo bem?

Pausa.

Assustado, fui ver quem era.

Era o cartão de crédito que estava sentado na minha pia, encostado na parede e apoiado em um dos pontos de interrogação. Pelo jeito, estava esperando-me ansioso pra conversar. Sem cerimônia, o cartão apresentou-se como sendo Lisa Maria Card, minha criada. Com uma voz sensual e sedutora, olhou em meus grandes olhos e começou a falar-me sobre a vida, a dignidade, o orgulho, o respeito, sobre arroz, feijão e salaminho, que queria me ajudar, que seria uma boa e fiel companheira, na saúde e talvez na doença (dependia do plano médico). Era pra isso que ela estava ali.

Não falei uma palavra. Estava pasmo.

Mal conhecia a cidadã e ela querendo me dar conselhos e entrar na minha vida pela porta da frente. Quem deu as chaves para essa vagabunda oportunista? E incrível... tinha uma cara de vagabunda.

Hummmm. Como pode. Fui quebrar aquele cartão de crédito folgado ou melhor, ia queimá-lo para nem virar reciclado, quando fixei os olhos no holograma que havia impresso em sua lateral... nele, um pássaro colorido muito doido começou a bater asas, e os caracteres dourados, contendo um monte de números e meu nome em alto relevo, misturaram-se e formaram as palavras UMA CHANCE MEU AMOR e o telefone para o desbloqueio.

Senti uma pontada no peito, como a muito não sentia.

Eu, “limpo” de dívidas, mas buscando apagar o fogo que estava atingindo a gaiola dos meus beija-flores (minha carteira com 3 notas de R$ 1.00), estava ali passando por uma putz tentação, a mesma que me fez congestionar o tráfego aéreo de Curitiba com meus cheques voadores há dez anos e quebrou metade de minha família (que me fez jurar ao pé da santa que eu não me meteria mais em problemas financeiros).

- Que tal? isse ela no final, tentando constranger-me.

Para não pirar, fui dormir.

Sonhei que estava chutando a santa e acordei embriagado pela voz de Lisa em meus ouvidos. A danada estava dormindo ao meu lado, embrulhada num folheto da Bergerson Joalheiros.

Fui trabalhar preocupado com meu coma financeiro, que estouraria no outro dia.

No fim do dia, na volta para casa e encontrei Lisa esperando-me no sofá, de pernas abertas. Não agüentei e acabei cedendo. Aceitei imprudentemente a sua proposta de união, com anel e tudo. Liguei para o tutor de Lisa, um banco multinacional, pedindo a mão de Lisa em casamento. A atendente e madrinha Maria Silvia do 0800 deu o OK. Em poucos minutos estava casado. Assumi o compromisso (teve até gravação da cerimônia). A festa e a ligação foi bancada pelo tutor da noiva. Maria Silvia pelo jeito ficou tão feliz que me deu de presente de casamento um limite de crédito muito acima do que eu esperava.

Dormi o sono dos preocupados. Acordei, tomei um café com Lisa e segui para o banco logo pela manhã. Cheguei com um sentimento estranho. Mas naquele momento, não tinha muito o que pensar. Era aproveitar a lua de mel e se beneficiar daquela união.

Entrei numa central de caixas eletrônicos, oito de um lado e oito de outro. Todos estavam lá com as calças arriadas, como que esperando para desvirginar minha esposa antes que eu. Desconfiado, escolhi aquele que devolvesse notas de R$ 1 e R$ 5 (talvez doesse menos). Coloquei meu cartão. O escroto engoliu, cuspiu e engoliu de novo. Uma mensagem aparece na tela: Estamos em contato com nosso computador central. Aguarde. (para ver se ela é virgem mesmo). Apareceu as opções e cliquei em retirada (do hímen). Informei a intensidade da operação: 50.00. Ouvi um grito de Lisa e logo após um barulho de dentro da máquina: o animal gozou 8 notas de R$ 5 e 10 notas de R$ 1. E ainda me deu o comprovante de desvirginamento. Só espero que meu querido cartão, Lisa, não tenha gostado, pensei.

Em pouco tempo já tinha virado uma puta. É pior que cheque. É muito fácil gastar. Lisa começou a administrar minha vida. Passei a andar com dinheiro no bolso. Os beija-flores de minha carteira agora tinham a companhia de araras e do mico-leão. Apareceu até uma onça pintada. Estava, na verdade, com o zoológico inteiro na carteira. Senti-me o Tarzan da Capital Modelo. Cheguei até a emprestar algum para minhas irmãs.

Fez sol e Lisa comprou-me uma bicicleta. Fez chuva e Lisa presenteou-me com uma capa e um guarda-chuva. Tudo era motivo para comprar. Em pouco tempo eu estava apaixonado por Lisa. Lisa era linda e me dava segurança e poder.

Reuni minha família para um almoço numa excelente churrascaria da cidade, para comemorar a união. Minha mãe não quis ir.

- Vamos comer bem. Nada de três carnes sangrando como das últimas vezes, falei.

Ninguém questionou nada. Creio que estava surdo de paixão. (ouvi um “ãh” de um sobrinho, mas naquela hora estava desconsiderando a opinião de crianças e idosos). Eram eu e mais 8 pessoas, parentes e até cunhados. Senti-me bem. Fiz questão que todo mundo comesse picanha e mousse de maracujá na sobremesa (um assalto a mão armada). Tinham que comer.

Ao chamar o garçom pedindo a conta, percebi que escrevi no ar: “estou fudido”. Passou mais uma vez o meu cartão pela máquina e reconheci a dívida com uma caneta invocada que Lisa me deu. A última conta, pensei. Já era hora desta festa do todo mundo nú acabar.

Saí do restaurante e quase fui ao shopping (só estava entrando lá para ir no banheiro ultimamente), mas aí era demais. Tinha voltado a sanidade. Não estava comprando fiado, cacete. Isto vai pesar no futuro. É. Vou me controlar e escutar mais o meu lado racional. E Lisa comprou-me um aparelho de som.

Na primeira fatura, veio o ônus. Fiquei assustado. Fiquei sabendo que tinha vários sócios na relação com Lisa, um tal de Mora, um outro chamado de Rotativo.. todos gordos gigolôs, com a conivência de seu tutor... Caiu a ficha: Lisa, era a vadia desta história de paixão e eu um cornoCard. Não aceitei a situação. Lisa logo me abandonou. Coração de mãe não se engana.

Liguei para Maria Silvia e ela me aconselhou a procurar um advogado. Desesperado, penhorei a aliança de casamento. Só deu para pagar as custas processuais. Aceitei, enfim, um acordo: pagaria uma pensão de R$ 250.00 por seis meses para Lisa.

Maria Silvia ligou-me. Pediu paciência.

- Isto é uma fase que acontece em todos os relacionamentos. Dê um tempo a Lisa. Tudo vai passar. Procure ela daqui a 6 meses. Quem sabe?

De pronto cantei para ela:
- Maria Silvia, piranha...

2 comentários:

Renato Prospero disse...

Uma história de romance com fins lucrativos e desavenças capitais em meio a orla consuimista. belo texto!

Daniela do Carmo disse...

Adorei o texto!